Escrito por Jane Eyre de Melo
O mundo que se encontra à nossa volta, e o que se encontra dentro de nós mesmos, é contínuo. Não existem definidas demarcações da realidade.No entanto, somos forçados a um pensar linear e acabamos por pensar a realidade numa sucessão de seqüências, de causa e efeito. Podemos observar então, que uma árvore só é uma árvore, se a isolarmos do resto da floresta, pois na verdade, originalmente, ela é parte integrante do todo. Assim, só somos também uma entidade separada, porque nosso ego nos isola do resto da humanidade.
O mito de Adão e Eva, isso antes do “pecado” enquanto no paraíso, é uma imagem simbólica de um estágio primitivo original, onde não somos capazes de identificar quais conteúdos nos pertencem e quais são propriedades do outro, porque o outro, inexiste, é como um continuum de nós mesmos. Nesse estágio, o inconsciente é soberano. E nesse relacionamento com o inconsciente, todos aqueles conteúdos que não conseguimos acessar, mas que lá se encontram, sofrem um processo de tentativa de busca de reconhecimento através de um mecanismo inconsciente chamado projeção.Esse é um mecanismo automático, pelo qual os processos de nosso inconsciente, são percebidos nos outros e não em nós, eles ilusoriamente lhes pertencem. Freud foi quem primeiro utilizou o termo projeção. Depois dele, Jung, só que reinterpretado. Para ele, a projeção é um fenômeno psicológico verificável, e a principio no cotidiano de todas as pessoas. Estamos sujeitos em nossas concepções acerca de outras pessoas e circunstâncias, a erros freqüentes de julgamentos. Uma transferência inconsciente onde involuntariamente a pessoa transfere um fato psíquico e subjetivo para um objeto exterior. E vê nesse objeto, alguma coisa que na verdade ele não possui, ou que se possui, só que em menor intensidade.E seguimos, vida afora, formulamos conceitos errados ou critérios de julgamento errados, sejam eles positivos ou negativos, em relação a uma pessoa ou uma idéia, só que inconsciente, aquele que gera as projeções também se esforça no sentido de corrigi-las, é como um fator interno no indivíduo, que faz com que ele corrija de tempos em tempos, a sua imagem de realidade.
O fato é que, acabamos projetando de maneira destemida e ingênua, nossa própria psicologia sobre os semelhantes. Conseguimos, assim, uma série de relacionamentos mais ou menos imaginários que se apóiam em tais projeções.E é na esfera afetiva que nossas projeções alçam vôos mais altos. Carotenuto, em suas teses sobre o amor, afirma que um relacionamento é regido por uma necessidade patológica de cada um dos parceiros e que sendo assim, todo amante representa a enfermidade do outro. Esse pensar nada romântico, baseia-se num fato real: todos projetamos. O estado de ser apaixonado, por si só, altera nossa relação com a consciência e com o inconsciente, que vai projetar no outro tudo aquilo que nos é interior e subjetivo, para que nós o encontremos no outro, ou por nós mesmos.
Na paixão, o que nos liga indissoluvelmente ao outro é a nossa sombra, que vemos projetada no objeto amado, retorna ela mesma, o objeto da nossa paixão. A dimensão amorosa, com sua cara de rompimento transgressivo, abaixa os níveis de nossa consciência, criando um espaço, o espaço psicológico do casal, em que tudo é lícito. É verdade, o amor nos torna livres, livres para manifestar sem inibições não apenas o próprio lado emocional, mas também a própria inclinação ao negativo, aquela que com sugestivo termo junguiano é chamada de sombra.
A projeção por ser um fenômeno pré-consciente, involuntário e independente da consciência, também se faz representar nos mitos de várias culturas. O mito de Eros é uma clara alusão ao fenômeno da projeção. Na mitologia hindu, o deus Käma, também se apresenta armado de arco e flecha. Um dos mais antigos simbolismos da projeção é aquele projétil, ou melhor, da flecha ou disparo mágico. As lanças, as setas simbolizam a “direção” para onde vai nossa energia psíquica. As setas de deus Eros são as acusadoras da comoção repentina, a paixão amorosa. Se nos tornamos alvo de uma projeção negativa de alguém, sentimos de uma maneira quase física, como sendo atingidos por um projétil, constituído por seu ódio. A projeção amorosa é detentora de uma enorme carga emocional. As palavras, as chacotas atingem o outro como projeteis, e simbolizam correntes de energia psíquica negativa projetadas sobre o outro.
O surgimento de projeções afinal parece sempre ser provocado por arquétipos e complexos do inconsciente. A ação desse espírito ou arquétipo invasor, também na dimensão amorosa é vivida como se uma flechada ou o ato de ser atingido por um raio. O raio é efetivamente, um símbolo, no bom ou no mal sentido, de um arrebatamento repentino por uma paixão.
Nessa viagem misteriosa através do amor cada um encontra o outro e, por trás do outro, a si mesmo. Todo discurso sobre o outro se torna, então, um discurso de si mesmo, a confissão mais íntima. A experiência parece dizer-nos que é a proximidade que provoca a perturbação; alguém ou alguma coisa para qual o olhar se dirige, nos cativa. Mas na verdade, o amor vive e se alimenta do que acontece em nós, da nossa interioridade. É interessante que se observe que tanto mais forte é a projeção, quanto menos conhecermos a dimensão do outro. É o próprio desconhecimento do outro, que faz com que nós possamos preenchê-lo, recheá-lo com dimensões interiores nossas.
No desconhecimento, o inconsciente se constela. Muitos homens e mulheres sabem disso e por isso mesmo se manifestam por meias palavras, por um não-dizer que deixam lacunas que acabam sendo preenchidas pelo outro. E aí, esse outro se envolve e se apaixona por si mesmo, pois aquilo que o outro, o misterioso evocou, são partes suas, desconhecidas, agora, reconhecidas no outro, lhe possibilitam a sensação de integralidade, de completude. Só que o outro, por estar preenchido por nós mesmos, nos “faz falta”. A sua ausência é a lembrança de nosso sentimento de estar em falta, de nossa própria incompletude. É por estarmos nele, o poder que exerce sobre nós é enorme, pois precisamos dele, intuímos que só por seu intermédio seremos inteiros.
É o tema doloroso e eterno da destruição das aparências. Estas são as escoras que nos sustentam na vida; devemos enganar-nos sobre o que fazemos, sobre o amor que vivemos, sobre a importância que pensamos ter no mundo, para podermos sobreviver...Dizia Novalis que o engano, é essencial para nossa alma: devemos poder nos iludir, porque só mediante os erros caminhamos para aquilo que chamamos verdade. Se não temos sonhado continuamente no percurso da dimensão amorosa, a nossa realidade de seres que subjetivamente se põe diante do outro não poderá emergir, porque trocaremos pelo verdadeiro e real algo que não corresponde a nós. A única coisa em que podemos autenticamente reconhecer é a nossa individualidade psíquica que cria a realidade do amor.
A retirada e a integração das projeções é, pois, uma questão delicada, cujo tratamento exige muito tato por parte do terapeuta. A pergunta se o Eu da pessoa analisada pode realmente suportar os efeitos colaterais após o esclarecimento de uma projeção, deverá estar sempre presente. Essa integração acontece quando um conteúdo psíquico mantido inconsciente passa a fazer parte do EU consciente, e começa a ser entendido como fazendo parte integrante do todo. Esses conteúdos, no entanto jamais poderão ser integrados na sua totalidade, pois jamais se consegue reconhecer todo o material projetado, uma vez que ele sempre é composto de material arquetípico e dos conteúdos do inconsciente coletivo, que não podem ser integrados ao individuo, à consciência do Eu. Esse conteúdo não integrável sofre então um deslocamento, que costuma ser denominado deslocamento das projeções, e aparece novamente projetado, após um período de latência do inconsciente, sobre um outro objeto. Certa vez, Jung relacionou o complexo do Eu com um homem pescando e navegando em seu barco (seus pressupostos conscientes ligados a sua concepção de mundo) no mar do inconsciente. Ele não pode sobrecarregar o barco com peixes das profundezas (conteúdos inconscientes), além o que é capaz de agüentar, senão afunda.
Bibliografia:
Aldo Carotenuto: Eros e Pathos, Amor e Sofrimento.
James Hall: A experiência junguiana
Mario Jacobi: O encontro analítico
Marie Louise von-Franz: Espelhos do Self.
Marie Louise von-Franz:.Adivinhação e Sincronicidade.
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5 comentários:
ótemooo hein joici, os 3 ultimos paragrafos entao... parecia q eu estava mergulhando na minha mente...rs
=*
Muito bom o artigo, da para parar e se envolver na leitura.
Abraços forte
Joice,
Muito bom o texto. Narrativa constante e raciocínio coeso.
Quanto a opinião, penso que na questão de projeção - do que sou, em o que você é - começa mesmo, lá nos primórdios onde Adão e Eva se descobriram um espelho do outro. Dai pra todas as relações amorosas, sejam elas amores ou paixões, projetar-se no outro é esperar que ele (ela) faça o que queremos ou somos, ou nos completem. Quase que matemático.
Muitas vezes, dizem, se quero saber se alguém corresponde ou não ao que espero, olho-me no espelho. Ali está estampada a relação. Tá no brilho dos olhos.
Difícil seguir as teorias de Jung ou outro que diz que vc se basta, vc se permite. Em questões de amor Homem e Mulher isto não funciona, não mesmo. Somos dois em um.Tem de haver reciprocidade. É humanamente, terreno.
Joici amiga... que texto. A gente vai se envolvendo na leitura.
Acredito totalmente na projeção quando estamos começando o relacionamento, seja qual for. Mas desconfiguro a projeção depois que as máscaras começam a cair e resulta em amor ou não, e não falo aqui só do amor romântico.
Beijo no coração
Joice,
Naveguei pelo texto, e, sinceramente, ainda estou processando tudo o que li.
Um grande abraço.
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